[Entro no ônibus, passo pela catraca]
Boa tarde, senhoras e senhores
Logo de antemão peço perdão
Pela minha zoada estar incomodando (gerundismo, sei disso, é a intenção)
A sua mente cansada
E minha voz estar tentando encontrar um espaço
Neste ônibus lotado, apertado
Me manter reto nesse horizonte estreito
[Distribuindo “x” produto aos passageiros]
O Sol nasce para todos, mas poucos têm o direito de alcançá-lo
E as escadas até lá são feitas de corpos suados
Nossos poros choram o que nossos olhos não têm tempo de chorar
E lutamos todos os dias para manter o pouco que temos
O pouco que não nos foi dado, mas conquistado
Porque bem sabemos que muitas vezes nem o “não” recebemos
Somos ignorados, largados detrás duma porta
Esperando uma resposta
E os que em nós se escoram chegam alto
Olham aqui para baixo e, na cara de pau, nos falam de “trabalho duro”
Trabalho duro, major? Já viu alguém batendo laje e saindo da obra de Ferrari?
E quem acredite nessa afirmativa, e não julgo, precisamos de esperança para se agarrar e não
endoidar
E eu mesmo não estaria passando de mão em mão, de ouvido em ouvido
Minhas dores e incertezas
Porquê um pacotinho com *insira aqui o produto* nunca é só um *insira aqui o produto*
Um corpo nunca é só um corpo
Um rosto nunca é só um rosto
Talvez minhas palavras estejam lhe fazendo pensar
Nas contas a pagar
Nas bocas a alimentar
Nos medicamentos que essa rotina cruel nos faz ter que tomar
“E se o dinheiro faltar?”
“E se mais dívida acumular?”
Pensamentos impossíveis de se evitar
E difíceis de na mente e no coração carregar
Nas costas, o peso de não poder ver o filho crescer
De ter que dizer “não” para que ele possa ter o que comer
De estar carregando o mundo e ainda assim correndo atrás de estudar
De ocupar o tempo de sono da madrugada lutando para ser concursado, matriculado
Ou terminar a monografia da faculdade que você chorou quando viu seu nome na lista de aprovados
São cinco ou seis dias por semana de cansaço;
O alívio da sexta-feira
Uma cerveja no sábado (e às vezes nem isso!)
E a frustração de ver o domingo indo embora pra começar tudo de novo
Foi no domingo onde Deus descansou
Que Deus nos abençoe nessa semana que mais uma vez começou
Cada um na sua correria
Cada um na sua realidade
Mas de pé ou sentado neste ônibus apertado
Nesse coletivo, esperando chegar no ponto que deve-se estar
Podemos parar e pensar
Que a dor é coletiva
E que todos os dias compartilhamos um espaço com diferentes histórias, diferentes vidas
Você deve até ter se perdido na minha voz, em seus pensamentos
Ou mesmo ignorado completamente o que eu estava aqui dizendo
Não tem problema, mas ó
É só um real, e três por dois
Barato iguais minhas palavras
E temo quando digo, mas talvez barato como minha vida
Eu até teria pedido uma ajuda pra passar a catraca
Mas hoje não faltou
E talvez eu possa hoje pagar por uma dose de cachaça