E lá estava eu, Centro de Atendimento Psicossocial – Álcool e Drogas, sentado numa
cadeira num pátio aberto, esperando meu atendimento com a avaliadora psicóloga. Do meu lado
esquerdo sentava uma mulher aflita, que tentava se concentrar na revista que tentava ler, e na fileira
de bancos à frente, um rapaz, seu namorado, tornava-se progressivamente mais violento e
direcionava a raiva em sua namorada; batia nas cadeiras, arrancava a revista de suas mãos – na qual
ele rasgou em determinado momento – e, algumas vezes, sentava-se ao lado dela com os braços
cruzados, olhando pra baixo, numa postura de arrependimento, como se pedisse por pena, somente
para se estressar com a namorada, que estava estressada devida toda a situação. Do meu lado
direito, um homem sentava-se imóvel.
Eu, sentado, observava o sol deslizar pelo céu para cair no mar, vendo somente seus raios
perpassando a altura dos prédios do Centro, onde localiza-se o aparelho. O dia era agradável, sendo
aquela uma parte mais tranquila do Centro, pouco se podia ouvir barulhos de obras, carros e o
comércio local girando. Com as árvores próximas do local e as plantas no pátio, a presença de
pássaros era maior, e o zumbido adormecido da cidade era sobreposto pelo dos pássaros
conversando entre si. Ao redor do pátio, outros indivíduos esperavam as suas vezes de serem
atendidos, uns menos impacientes do que os outros. O rapaz que se zangava e implicava (na
verdade, beirava a agressão) com a namorada era um viciado em pó e estava passando por uma crise
de abstinência, e não mais gritava somente com a namorada, mas chamava pela sua psiquiatra e
chamava-a de mentirosa, afirmando que ela havia-lhe dito que ele poderia ir lá pegar o
medicamento prescrito para ajudá-lo com seu vício – um tipo de medicamento específico que serve
como uma substância análoga ao pó, mas reduzindo os riscos de saúde e segurança que ele passa
consumindo o pó especificamente, além de seguir um planejamento profissional para tirá-lo do
vício. Raramente funciona. O rapaz gritava do fundo do seu peito; além do cansaço de estar
esperando há horas na fila, ele sentia-se discriminado, dava para ver. Ele vive isso diariamente, por
quê lá seria diferente? Naquele momento ele sentia medo, e gostaria muito que o tratamento
funcionasse, que lhe tirasse do vício, da pobreza, da falta de emprego, da falta de educação, da falta
de vínculo familiar.
O segurança do local não se mostrava alarmado com a situação, sem dúvida alguma aquela
situação era habitual no seu trabalho, e somente deixava claro para o indivíduo que a sua força
estava a postos caso fosse necessário usá-la, encarando-o fixamente, acompanhando cada um dos
seus movimentos, dos seus gestos com as mãos e dos caminhos que tomava pelo pátio. Eu lia um
livro dum personagem chamado Fausto, criado por Jorge Amado. O livro, junto da situação e do
ambiente tenso em que eu estava, me espantou em muito com a profundidade de seus textos,
cheguei a quase chorar, mas contive-me e escrevi um pequeno poema sobre o local, basicamente
sobre o sentimento de miséria que aquele local trazia. O livo que estava em minhas mãos pertencia
ao local, eu o levei para casa na volta.
Eu já esperava há, pelo menos, uma hora e meia, duas horas, quando um indivíduo chegou
de bicicleta no local, trajava todo o equipamento de segurança para ciclistas e roupas da prefeitura
municipal. Em seu colete havia escrito “SOCORRISTA VOLUNTÁRIOem caixa alta, e nele,
várias ferramentas e pequenas insígnias. Na garupa de sua bicicleta, um kit de socorros.
Interessante, pensei, nunca havia visto algo como aquilo, perguntei-me de que forma poderia me
tornar um. O homem entrou tranquilamente, de óculos escuro, tinha o passo firme e não olhava para
os lados, como quem entra em um ambiente vazio. Andou até o final do pátio e estacionou a sua
bicicleta e, num sobressalto, começou a apontar dedos e a discursar para todos no pátio, anunciando
a sua campanha política naquele Centro. Pulava e formava vetores teatrais no meio do pátio,
aproximando-se dos presentes e falando junto aos seus rostos, apontando seus dedos para todos nós
e nos alertando de um sujeito outro, que também se candidatava para a mesma função:
— Cuidado! Esse Carlos – Carlos, coloquemos esse nome como o nome dito – não faz nada
aqui. Não levanta um dedo por este lugar! Eu tô aqui sempre pra cima e pra baixo, pensando em
coisa, arrumando as coisas…
Acompanhava-o em todo o seu escarcéu pelo pátio, acenando positivamente com a cabeça e
franzindo as sobrancelhas, e isso o chamou a atenção. Ele começou a falar mais próximo de mim, e
aproveitando isso, perguntei-lhe qual era a sua função ali, quem ele era afinal;
— Eu? Eu sou que nem tu. Tu não cheira, né? – confirmei, mesmo não cheirando–. Eu vim
pra cá à força pela minha família, porquê era viciado em pedra. Quer dizer, ainda sou, né? Vou lhe
dizer uma coisa; a gente nunca na vida vai deixar de ser viciado, e a gente nunca na vida vai deixar
de tomar remédio. Eu tomo o sertralina, pra ansiedade – esse nome eu reconheci e o guardei
comigo, pois tomei esse mesmo medicamento por um período de mais ou menos dez meses – e o
[…] – não sei, realmente não sei o nome.
Pegava o gancho em suas frases para fazer mais perguntas sobre o que ele dizia, sobre ele mesmo,
seu vício, a sua função como paciente e colaborador voluntário do local. Usei-o como um aparelho
para sanar dúvidas que eu tinha com a minha própria presença no ambiente. “Álcool e Drogas”, li e
“Drogasidentifiquei. Sou usuário habitual de maconha e, com uma frequência maior que qualquer
cidadão médio brasileiro, consumo também psicodélicos (LSD e supostos análogos e cogumelos),
então me convenci de que faria sentido eu ir me consultar lá. Também por sugestão de uma amiga à
época – colega hoje e, para sempre, ex-namorada –, que consumia habitualmente mais drogas que
um brasileiro usuário médio de maconha. Eu sentava, esperava, e perguntava-me se fazia sentido
estar junto ao rapaz que suplicava pelo seu remédio – ou pó, que seria acompanhado de muito
arrependimento, mas nenhuma
Passaram-se mais horas, e a maioria das pessoas no pátio já haviam sido atendidas ou já
estavam sendo atendidas pelos doutores nos consultórios. Eu agora estava acompanhado por uma
senhora, que aguardava por um atendimento, não para ela, mas para um parente. Não me lembro
bem se era o dele que ela aguardava, mas aquela senhora me contava de seu irmão, viciado em
drogas, extremamente presunçoso e arrogante. Quando criança, contou-me ela, ele era muito
competitivo e seus pais o influenciava, fazendo-o se envolver em diversas atividades de alta
produtividade intelectual que consumiam muito do seu tempo de criança, mas que lhe davam uma
satisfação pervertida pelo mérito que recebia, além dos prêmios e uma grande capacitação. Caiu nas
drogas, e foi muito difícil convencê-lo a começar o tratamento devido a sua arrogância. À época, ele
já era um senhor, ainda viciado. Para sempre viciado, para sempre tomando remédio. Disse-me que
eu era muito parecido com seu irmão, porém aparentemente menso desdenhoso e mesquinho, e
disse-me também que, quando me viu antes de aproximar-se de mim, eu estava cinza, pálido, com
um aspecto de frieza do sangue, e que naquele momento em que me dizia estas mesmas coisas, eu já
aparentava diferente, “corado”. Ela pediu meu número, disse que ligaria para saber de novidades.
Nunca ligou.
A mulher foi embora, e pouco após a sua ida, chegou a minha vez de ir para o consultório
com a psicóloga. Fiquei espantando com o que vi quando entrei na sala, o próprio ambiente branco
e hospitalar que têm os consultórios médicos de quaisquer tipos já me trazem nervosismo, minha
pressão naquele momento estava baixa, e quando entro, três ou quatro garotas estavam sentadas em
cadeiras rentes à parede, com caderninhos em seus colos, e a doutora junta a uma mesa com um
computador. Não sei se ela pôde perceber o completo descontentamento que eu expressava em meu
rosto com aquela situação, mas a primeira coisa que ela me perguntou depois de um cordial “Boa
tarde, fique à vontadefoi se estava tudo bem que aquelas estudantes de Psicologia duma faculdade
particular próxima acompanhassem o meu atendimento para fins de estudo, elas estavam estagiando
ali. Elas me cumprimentaram e eu também as cumprimentei, ainda ansioso, mas mais aliviado pelo
esclarecimento. Disse que não, não ficaria confortável. Então a médica me perguntou se podia ficar
ao menos uma, disse que sim, então ela me perguntou se podiam ficar duas. Disse que sim. Duas
ficaram, o restante saiu. Queixei-me de ansiedade, experiências de dissociação, tristezas e estresses
intensos e repentinos, angústia, traumas com meus pais e eticéteras. Ela me perguntou umas coisas,
e fui respondendo, dizendo outras. Expressei minha vontade de induzir episódios dissociativos para
talvez melhor compreendê-los, tendo em vista que eles provavelmente não iriam parar nunca em
minha vida, sempre voltando em algum momento de ansiedade extrema. Ela disse que melhor não.
É, melhor não.